domingo, 14 de fevereiro de 2010

Soletre Inevitabilidade



Melanie acordava às seis horas da manhã há pelo menos dois anos.

Allan acordava às oito.

Naquela época, Jasper acordava um pouco mais tarde.

Melanie preparava o café da manhã, o deixava intocado na geladeira e ia tomar banho. Ela não comia de manhã para não desperdiçar seu tão concorrido tempo.

Allan acordava e ia direto ao banheiro fazer a barba, que o deixava com cara de bêbado sem função.

Jasper tinha quem fizesse sua comida favorita todas as manhãs, e não se preocupava com quando ia tomar banho.

Melanie beijava suas duas filhas toda manhã antes de deixá-las para ir ao trabalho.

Allan não tinha fotos na estante, tampouco pessoas para se despedir. “Ainda”, como ele costumava pensar.

Jasper ainda vivia com seus pais, mas não prezava o fato exatamente como devia.

Melanie pegava um taxi até a sua empresa.

O taxi de Allan era seu trabalho.

Jasper não tinha porque trabalhar.

Melanie odiava seu trabalho. Ela ouvia tardes intermináveis de insultos e gritos, e todos gritavam com ela. Toda vez que ela decidia que ia largar tudo para o alto e ser pintora, ela ouvia a voz de suas filhas e pedia a si mesma para agüentar. Só mais um pouco.

Allan gostava do que fazia, mesmo que seu trabalho não abrisse espaço para todos os sonhos que ele tinha quando mais jovem. Ele já não tinha uma vida toda pela frente, e se conformava em ser feliz trabalhando e vendo os amigos às sextas, no bar perto de sua casa.

Jasper tinha vários amigos, e naquele dia em especial eles se reuniram na casa dele antes da cerimônia de formatura do colegial. Jasper não ligava muito para essas formalidades, mas esperava ansioso pela festa.

Melanie acabara de receber a notícia de que teria de estender seu período até o fim da noite.

Allan sempre trabalhava até que seus olhos se cansassem de prestar atenção aos carros mais próximos.

Algum dos amigos de Jasper trouxera uma caixa de cerveja.

Já era noite, e Melanie olhava desesperada para o relógio de minuto em minuto. Mais uma noite que ela não jantava com suas filhas. Mais uma noite em que ela choraria antes de dormir por não ser uma mãe presente.

Allan batia a cabeça no volante, enquanto nenhum cliente aparecia. “Ainda há tempo de viver minha vida”, pensou, e assim respirou fundo.

Jasper estivera bêbado demais para comparecer à sua formatura, e seus pais eram ausentes demais para notar isso.

Melanie foi dispensada.

Allan estava a ponto de chorar.

Jasper e seus amigos pegaram o carro.

Melanie correu para fora do prédio da sua empresa, e recorreu ao único taxi disponível àquela hora.

Allan abriu a porta para aquela moça simpática, e ia levando-a para seu destino.

Jasper decidiu mostrar à seus amigos o quão potente o carro de seus pais era.

Melanie não pode fazer nada se não gritar. Allan não pode fazer nada se não tentar desviar do carro descontrolado que vinha em sua direção. Jasper podia ter feito algo, mas não naquele momento.

Um garoto eternamente marcado pela culpa, um homem inválido e uma vida interrompida enquanto ainda havia muito a se fazer.

As filhas de Melanie sentiriam falta da sua mãe. Chorariam todas as noites a partir do dia que entendessem que ela morrera, mas acabariam por esquecer até mesmo os seus traços. Não era justo que Melanie fosse esquecida, mas assim seria.

Allan não poderia mais trabalhar, e o resto de sua vida melancólica seria em uma cadeira de rodas. Ele já não teria mais sonhos, não teria mais desejos, não teria ambições. Aos poucos ele perderia o contato com todos que amava, e cairiam no esquecimento. Não era justo que Allan fosse esquecido, mas assim seria.

Jasper sobreviveu ileso por fora, mas despedaçado por dentro. Mas ele nunca cairia no esquecimento. Ele sobreviveu para ser lembrado pelas filhas de Melanie e por Allan. Ele sobreviveu para ser lembrado, mas principalmente para lembrar. A cada noite, e a cada sonho suado ele lembraria que as coisas poderiam ter sido diferentes, ele lembraria que destruíra duas vidas, e tais lembranças o assombrariam para o resto de sua existência.

São detalhes que mudam nossa vida, e você nunca sabe o que pode acontecer. A única certeza absoluta nesses casos, é que você não deve em circunstância alguma beber e dirigir.

2 comentários:

  1. é ruim saber que ainda existe pessoas que nao sabem que não é apenas a 'sua vida' que está em jogo quando se dirige alcolizado, e ainda existem pessoas que são a favor da legalizaçao da maconha. Belo texto, muito comovente, não sabia o quão voce era dramatico. kk' abraços.

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  2. Nossa! Quase chorei aqui... hehe
    Perfeito, como sempre!

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